quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

ALFAIATE JOSÉ PEREIRA ROCHA



Alfaiates.
Sim, eles ainda existem!
No ano passado um vídeo circulava pelas caixas de email dos fashionistas, mostrando o processo de produção de ternos em uma fábrica na Turquia. As imagens eram a tradução fiel e literal do termo fast fashion. Os ternos eram confeccionados com a mesma velocidade em que batatas fritas saltam dos balcões de lanchonetes para as mesas dos clientes. Os funcionários da fábrica não eram costureiros, mas sim operadores de máquinas. E isso me fez pensar no trabalho dos alfaiates. Será que eles ainda existem? E se há sobreviventes, será que ainda há trabalho para eles?
Para responder a esses “aindas”, fui conhecer seu Ebenézer, alfaiate há sessenta anos, no bairro do Alecrim. A primeira boa surpresa é que não lhe falta trabalho. Durante mais de duas horas de entrevista, a campainha e o telefone não pararam. Clientes antigos vinham pegar suas encomendas, e os novos ligavam para marcar horário. Um deles é o comerciante Eduardo Mendes, que procurou o alfaiate depois que teve os ternos quase destruídos em uma famosa rede que oferece serviços de costura e consertos. “Tenho dificuldade de encontrar ternos nas lojas. O caimento nunca fica bom, e sempre preciso fazer ajustes. Levei meus ternos a esse lugar famoso para ajeitar, e fizeram um estrago grande. Minha irmã sugeriu então que eu procurasse um alfaiate. Nem sabia se ainda existia isso, mas haviam me dito que tinha um aqui no Alecrim. Vim como quem procura assim um animal em extinção! Ainda bem que consegui encontrá-lo”, comemora.
Seu Ebenézer recebe os clientes com muitas piadas, e vai logo oferecendo um cafezinho. O bom humor e o riso fácil são suas principais características. Quando pedimos que ele faça uma comparação entre o ritmo frenético de produção nas fábricas e o trabalho artesanal do alfaiate, ele se sai com essa: “Eu corto uma calça em 3 minutos, ninguém faz isso mais rápido que eu. Pode procurar em qualquer lugar do mundo! Falaram meu nome até no programa da Hebe, e teve um tempo que queriam me levar para um programa de TV pra mostrar isso” conta, referindo-se ao que deve ter sido o precursor do “se vira nos 30”.
História
Ele nasceu José Tácito Pereira Rocha. O nome Ebenézer – que em hebraico significa “até aqui nos ajudou o senhor”- foi adotado aos treze anos, quando conta ter “ouvido um chamado de Deus”. E se podemos considerar precoce receber um “chamado divino” aos treze, o que dizer de iniciar uma carreira na mesma idade? José Tácito, então aluno da Escola Industrial de Natal, virou Ebenézer na mesma época em que começou a costurar, ainda menino. O curso não chegou a concluir, pois precisava trabalhar. Ele tinha aquela maestria nata, e a certa altura já cortava e costurava melhor que os professores da escola.
Hoje, aos 73 anos, dá risada quando perguntado porque escolheu a alfaiataria. Diz que só conta se “a máquina não estiver gravando” (foi difícil convencê-lo que eram apenas fotografias, nada de filmagem), e com muita insistência, ele confessa: “Naquele tempo lá na Escola Industrial tinha curso de marcenaria, mecânica, arte em couro e alfaiataria. Eu tirei 10 em todas, menos em alfaiataria. Não gostava de jeito nenhum, porque naquela época dava muito boiola! Meu negócio era jogar futebol e não estudar. Como tinha pouca gente querendo ser alfaiate, o professor disse que me dava 20 pontos pra eu ficar em alfaiataria. Pensando em ganhar esses pontos tudinho sem estudar, eu aceitei!”, confessa. E segue “agora tem uma coisa, com seis meses eu já tava colocando o professor no bolso. Coisa de dom de Deus mesmo”.
Ao longo desses 60 anos de carreira, o alfaiate cultivou uma vasta e variada clientela. Já fez ternos para quase todos os políticos potiguares, e até Ulisses Guimarães já vestiu as criações de Ebenézer. Tem clientes que estão com ele desde que começou na profissão. “Tenho cliente já com 90 anos, quando eles não podem vir aqui, eu vou atendê-los em casa”, conta.
Com o trabalho no atelier, Ebenézer criou as duas filhas, e conquistou uma vida confortável. Hoje, por opção própria, vive de forma mais modesta. Ele conta que durante certo período foi um homem vaidoso, orgulhoso dos carros sempre novíssimos que possuía. Mas evita dar mais detalhes sobre essa época. O sigilo é quebrado pela chegada de um amigo que o conhece há décadas. O homem vai logo entregando “quando eu conheci Ebenézer ele andava num carro arrodeado de mulher!”. Nosso entrevistado sorri desconcertado e vai logo tratando de despachar o amigo dedo-duro. Em seguida conta que não gosta de falar sobre esse tempo em que “andou perdido”. E se emociona ao falar que, para ele, o que importa é que “Deus o chamou de volta”. Depois enxuga as lágrimas e abre um sorriso para mostrar o único hábito de vaidade que ainda cultiva. Tira um pente do bolso e passa vagarosamente pelos cabelos, perguntando: “E aí minha filha, ficou bom? Como se pra velho tivesse jeito né?”, e solta mais uma de suas gargalhadas.
Alzheimer
Seu Ebenézer não aparenta a idade que tem. Até o ano passado ainda jogava futebol, “e corria os noventa minutos, escreva aí!”, enfatiza. No momento está longe dos gramados por causa de uma cirurgia de próstata. Mantém a boa forma com uma alimentação sem excessos. “Como pouco, e não gosto de nada gorduroso. Minha mulher adora um queijo de manteiga. Eu não chego nem perto, atleta não come queijo!”, brinca.
Além disso, se mantém longe da televisão (esse sim deve ser um grande segredo de longevidade), diz não gostar da programação da TV aberta atualmente, e quando não está trabalhando, aproveita pra dormir. Nos fins de semana, ele chega a dormir 12 horas por noite, marcadas e contadas no relógio.
Por causa disso tudo, é impossível não se surpreender quando ele conta que tem Alzheimer. “Estou com a mesma doença da minha mãe”, sentencia. Mas seu Ebenézer descobriu uma maneira de driblar a situação. “O médico me disse – leve a vida sempre brincando que você vai enganando a doença. E assim eu faço. Quando eu venho no ônibus que vejo uma criança eu faço logo uma careta. Aí o menino diz– Mãe aquele velho estirou a língua pra mim. Quando a mãe olha pra mim eu to com a maior cara de velho bonzinho. Depois a criança começa a rir, e isso eu já tiro meu dia todinho na brincadeira”.
Além do bom humor, o trabalho parece ser também uma arma poderosa na luta para manter suas próprias lembranças. Todos os pedidos e as fichas dos clientes, estão escritos em cadernos de capa escura e folhas pautadas, em um sistema que só ele entende. Sempre que esquece alguma coisa sobre um cliente, ele consulta o caderno.
Mais um cliente chega. Uma nova folha do caderno a ser preenchida, e hora de concluir a visita e deixar nosso alfaiate trabalhar em paz. Na despedida, a última piada “Se essa máquina conseguir viver depois dessa, já é uma sorte. Esse tempo todinho tirando retrato de velho, é um negócio sério, viu?”
Antes de ir faço uma ultima pergunta só para confirmar a resposta que já intuía: -O senhor pensa em parar de trabalhar e descansar durante um tempo? “Nunca minha filha! Só quando eu morrer ou minhas mãos endurecerem e eu não puder mais segurar a tesoura.”
É confortante saber que enquanto o mundo produz ternos em larga escala, através de um processo totalmente impessoal, ali no Alecrim teremos durante muito tempo ainda um senhor habilidoso, empunhando sua tesoura e fazendo ternos como antigamente.
(Lembrando que a Revista Salto Agulha pode ser lida aqui no blog, no item Revista do Menu. Ou, se preferir, você pode acessar a versão em PDF. Já quem aprecia o papel, pode pegar seu exemplar impresso nas Lojas Spicy ouBain Douche do Midway Mall.)

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